Leitura sem piedade

Gazeta do Povo, 05/05/2010 - Curitiba PR
Leitura sem piedade
Em meados da década, o antropólogo Felipe Lindoso – um dos virtuosos do mercado editorial brasileiro – publicou um estudo nanico, porém revolucionário, intitulado O Brasil pode se tornar um país de leitores? Deu o que falar. A pergunta, propositalmente com jeito de “e por falar nisso”, teve o efeito de um beliscão de mãe. Há muito se reza a ladainha de que só o ensino e a leitura podem salvar a nação do fogo do inferno. Virou um argumento messiânico. Mas ninguém tinha ousado duvidar da possibilidade de a gente dar um jeitinho de se salvar. Pois é. O risco existe e ao insinuá-lo Lindoso deixa o leitor com a mão no queixo. Ponto para ele. É dessa insegurança que o pesquisador tira proveito para chamar atenção sobre suas teses, tirando da boca do público a velha resposta pronta para as mazelas nacionais. E a mais importante de suas teses é que só se vai vencer a batalha do livro e da leitura com estratégias agressivas e certeiras, semelhante às dedicadas ao agronegócio ou ao setor de energia.

A tática de guerra é a seguinte. Sabe-se que os índices de leitura se movem, para cima, a cada vez que a economia aquece. Os êxitos do Plano Cruzado e do Real fizeram com que mais livros fossem retirados das prateleiras, para alegria geral da nação. Mas tolo o país que se fiúza apenas no sobe e desce do mercado para 
avaliar seu desempenho de leitura. Seria o mesmo que dizer que o aumento nas vendas de barras de chocolate representa que as pessoas aprenderam mais sobre boa alimentação. Para ser um país de homens e mulheres com livros às mancheias é preciso articular três itens: os avanços na educação, a melhoria de renda e o tempo dedicado ao esporte de juntar letrinhas. Eis a questão. Tempo é prioridade, cultura, atividade humana. Não é um índice do IBGE. E fazer com que as pessoas dediquem algumas horas do seu dia ao silêncio da leitura implica dizer que essa prática é tão importante quanto pilotar iPods, ir ao cinema ou gozar das delícias urbanas, para citar algumas donatárias dos relógios contemporâneos.

É assunto complicado, mexe com a alma e a alma é o segredo do negócio. Daí a tentação de confundir bom desempenho com o sucesso dos livros da moda, a exemplo de O Código Da Vinci, de Dan Brown, ou com a saúde financeira das editoras cristãs, às voltas com a piedade e com autoajuda. A essa altura, alguém pode dizer que se volta ao ponto – é tudo uma questão de educação. E é. Não há nada mais educativo do que promover na sociedade a proliferação de agentes de leitura. Que eles sejam tantos quanto os garis, os agentes de saúde e os
professores da rede pública. E que agentes de leitura sejam inclusive esses todos. Caso existam, aos borbotões, esses operários da leitura vão se ocupar de ensinar a ler, a ter boa luz em casa e um lugar adequado para abrir o livro. Mais do que isso. Vão vigiar os currículos es­­colares, para que privilegiem a leitura. Pro­­moverão a leitura em voz alta – essa lição de antigamente, caída em desuso nas salas apinhadas das de alunos. Os agentes irão às ruas exigir programas de redução do preço dos livros.

De quebra, farão campanhas em favor do livro que mobilizarão mundos em fundos, tanto as que são feitas para evitar as DSTs, os acidentes de trânsito, a homofobia. Nos palanques, hão de pedir que as verbas de incentivo à cultura não privilegiem tanto os artistas esquecendo-se, sem piedade, dos seus consumidores. Parece um manual de utopia dos anos 60, editado para os anos 2000. E talvez o seja, porque este de fato é uma libido reprimida do Brasil – ser um país de leitores. Chega de lágrimas: é possível, se houver políticas continuadas, se superarmos a marca vergonhosa de 25% dos municípios, apenas, com bibliotecas. Se o livro se tornar importante. Do contrário, a resposta à pergunta de Lindoso será “não”. E não veremos país nenhum.
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