Em 200 anos, português `brasileiro` pode se tornar língua autônoma; entenda

Em 200 anos, português `brasileiro` pode se tornar língua autônoma; entenda

Agência Fapesp - IG Educação - 09/05/2015 - São Paulo, SP

A possibilidade de ser simples, dispensar elementos gramaticais teoricamente essenciais e responder “sim, comprei”, quando alguém pergunta “você comprou o carro?”, é uma das características que conferem flexibilidade e identidade ao português brasileiro. A análise de documentos antigos e de entrevistas de campo ao longo dos últimos 30 anos está mostrando que o português brasileiro já pode ser considerado único, diferente do português europeu. O português brasileiro ainda não é, porém, uma língua autônoma: talvez seja – na previsão de especialistas, em cerca de 200 anos – quando acumular peculiaridades que nos impeçam de entender inteiramente o que um nativo de Portugal diz.

A expansão do português no Brasil, as variações regionais com suas possíveis explicações, que fazem o urubu de São Paulo ser chamado de corvo no Sul do país, e as raízes das inovações da linguagem estão emergindo por meio do trabalho de cerca de 200 linguistas. De acordo com estudos da Universidade de São Paulo (USP), uma inovação do português brasileiro, por enquanto sem equivalente em Portugal, é o R caipira, às vezes tão intenso que parece valer por dois ou três, como em porrrta ou carrrne.

Associar o R caipira apenas ao interior paulista, porém, é uma imprecisão geográfica e histórica, embora o R desavergonhado tenha sido uma das marcas do estilo matuto do ator Amácio Mazzaropi em seus 32 filmes, produzidos de 1952 a 1980. Seguindo as rotas dos bandeirantes paulistas em busca de ouro, os linguistas encontraram o R supostamente típico de São Paulo em cidades de Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e oeste de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, formando um modo de falar similar ao português do século XVIII.

Quem tiver paciência e ouvido apurado poderá encontrar também na região central do Brasil – e em cidades do litoral – o S chiado, uma característica hoje típica do falar carioca que veio com os portugueses em 1808 e era um sinal de prestígio por representar o falar da Corte. Mesmo os portugueses não eram originais: os especialistas argumentam que o Schiado, que faz da esquina uma shquina, veio dos nobres franceses, que os portugueses admiravam.

A história da língua portuguesa no Brasil está trazendo � tona as características preservadas do português, como a troca do L pelo R, resultando em pranta em vez de planta. Camões registrou essa troca em Os lusíadas – lá está um frautas no lugar deflautas – e o cantor e compositor paulista Adoniran Barbosa a deixou registrada em diversas composições, em frases como “frechada do teu olhar”, do samba Tiro ao Álvaro.

Em levantamentos de campo, pesquisadores da USP observaram que moradores do interior tanto do Brasil quanto de Portugal, principalmente os menos escolarizados, ainda falam desse modo. Outro sinal de preservação da língua identificado por especialistas do Rio de Janeiro e de São Paulo, dessa vez em documentos antigos, foi a gente ou as gentes como sinônimo de “nós” e hoje uma das marcas próprias do português brasileiro Célia Lopes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), encontrou registros de a gente em documentos do século XVI e, com mais frequência, a partir do século XIX. Era uma forma de indicar a primeira pessoa do plural, no sentido de todo mundo com a inclusão necessária do eu. Segundo ela, o emprego de a gente pode passar descompromisso e indefinição: quem diz a gente em geral não deixa claro se pretende se comprometer com o que está falando ou se se vê como parte do grupo, como em “a gente precisa fazer”. Já o pronome nós, como em “nós precisamos fazer”, expressa responsabilidade e compromisso.

De vossa mercê para cê

Os documentos antigos evidenciam que o português falado no Brasil começou a se diferenciar do europeu há pelo menos quatro séculos. Uma indicação dessa separação é o Memórias para a história da capitania de São Vicente, de 1793, escrito por frei Gaspar da Madre de Deus, nascido em São Vicente, e depois reescrito pelo português Marcelino Pereira Cleto, que foi juiz em Santos. Comparando as duas versões, José Simões, da USP, encontrou 30 diferenças entre o português brasileiro e o europeu. Uma delas é encontrada ainda hoje: como usuários do português brasileiro, preferimos explicitar os sujeitos das frases, como em “o rapaz me vendeu o carro, depois ele saiu correndo e ao atravessar a rua ele foi atropelado”. Em português europeu, seria mais natural omitir o sujeito, já definido pelo tempo verbal – “o rapaz vendeu-me o carro, depois saiu a correr…” –, resultando em uma construção gramaticalmente impecável, embora nos soe um pouco estranha.

Um morador de Portugal, se lhe perguntarem se comprou um carro, responderá com naturalidade “sim, comprei-o”, explicitando o complemento do verbo, “mesmo entre falantes pouco escolarizados”, observa Simões. Outra diferença é a distância entre a língua falada e a escrita no Brasil. Ninguém fala muito, mas muinto. O pronome você, que já é uma redução de vossa mercê e devosmecê, encolheu ainda mais, para cê, e grudou no verbo: cevai?

“A língua que falamos não é a que escrevemos”, diz Simões, com base em exemplos como esses. “O português escrito e o falado em Portugal são mais próximos, embora também existam diferenças regionais.” Simões complementa as análises textuais com suas andanças por Portugal. “Há 10 anos meus parentes de Portugal diziam que não entendiam o que eu dizia”, ele observa. “Hoje, provavelmente por causa da influência das novelas brasileiras na televisão, dizem que já estou falando um português mais correto.”

“Conservamos o ritmo da fala, enquanto os europeus começaram a falar mais rápido a partir do século XVIII”, observa Ataliba Castilho, professor emérito da USP, que, nos últimos 40 anos, planejou e coordenou vários projetos de pesquisa sobre o português falado e a história do português do Brasil. “Até o século XVI”, diz ele, “o português brasileiro e o europeu eram como o espanhol, com um corte silábico duro. A palavra falada era muito próxima da escrita”. Célia Lopes acrescenta outra diferença: o português brasileiro conserva a maioria das vogais, enquanto os europeus em geral as omitem, ressaltando as consoantes, e diriam tulfón para se referir ao telefone.

Há também muitas palavras com sentidos diferentes de um lado e de outro do Atlântico. Os estudantes das universidades privadas não pagam mensalidade, mas propina. Bolsista é bolseiro. Como os europeus não adotaram algumas palavras usadas no Brasil, a exemplo de bunda, de origem africana, podem surgir situações embaraçosas. Vanderci Aguilera, professora sênior da Universidade Estadual de Londrina (Uel) e uma das linguistas empenhadas no resgate da história do português brasileiro, levou uma amiga portuguesa a uma loja. Para ver se um vestido que acabava de experimentar caía bem às costas, a amiga lhe perguntou: “O que achas do meu rabo?”.

Um sinal da evolução do português brasileiro são as construções híbridas, com um verbo que não concorda mais com o pronome, do tipo tu não sabe?, e a mistura dos pronomes de tratamento você e tu, como em “se você precisar, vou te ajudar”. Os portugueses europeus poderiam alegar que se trata de mais uma prova de nossa capacidade de desfigurar a língua lusitana, mas talvez não tenham tanta razão para se queixar. Célia Lopes encontrou a mistura de pronomes de tratamento, que ela e outros linguistas não consideram mais um erro, em cartas do marquês do Lavradio, que foi vice-rei do Brasil de 1769 a 1796, e, mais de dois séculos depois, em uma entrevista do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

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